Gentrificação: A cidade como campo de apropriação, deslocação e segregação

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Partilhamos uma reflexão sobre a gentrificação enquanto processo de desalojamento capitalista, de um amigo de Autonomies …

No dia 14 de Junho de 1989, Bruce Bailey, activista de defesa dos direitos de inquilinos na cidade de Nova York foi assassinado, o seu corpo esquartejado e abandonado numa lixeira do Bronx. A sua cabeça nunca foi encontrada. Chegaram assim ao fim mais de vinte anos de militância, na constituição de associações e sindicatos de inquilinos e moradores, na organização de greves de renda, na participação em processos legais contra proprietários em violação das leis de arrendamento e de habitação. Em 1995, Jack Ferranti foi acusado do crime, mais o seu irmão Mario, mas sem que a sua culpabilidade fosse provada. Jack Ferranti, em 1989, era proprietário de 14 prédios de habitações em Manhattan.

Se inicio esta reflexão sobre a gentrificação com este acto bárbaro, é porque a gentrificação em si o é, ou seja, é essencialmente um processo violento de transformação urbana movimentada por ambições económicas e guiada por forças políticas afins sobre justificações ideológicas de renovação, ressurreição e purificação social da cidade.

A violência do processo exprime-se na própria palavra, “gentrificação”. Cunhada pela socióloga inglesa Ruth Glass em 1964 para denominar a transformação de bairros operários em bairros de classe média na cidade de Londres, o termo ganha vida própria em propagar-se por outros idiomas para descrever processos de aparências semelhantes noutros lugares. O significado intencionado advém da palavra latina “gens”, de “nobreza” ou “aristocracia”, “gentry” em inglês, acrescentada a noção de um processo de mutação, de câmbio, em que a agência, ou presença, de gente “nobre” ganha protagonismo.

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Associada a uma mera alteração nos padrões de consumo relativamente à habitação, a gentrificação pode somente sugerir uma transformação consequente à livre escolha de indivíduos desejosos de regressar à cidade por razões diversas, económicas, sociais, culturais; uma transformação que pode acarretar tanto efeitos positivos como negativos e que cabe às autoridades públicas de gerir para garantir o bem comum. Interpretações da gentrificação deste género poderão apaziguar almas, mas não passam de contos de fadas. Insisto no que há de bárbaro na palavra e aferro-me aquilo que ela denota de forma clara, que a gentrificação é um desenvolvimento de deslocamento, de desalojamento, de expulsão de classes populares por classes dominantes. Segundo esta leitura, tanto se poderia falar de “gentrificação”, como de “aburguesamento”, como de “Haussmannisação” (neste último caso, referindo-me ao prefeito de Paris, Barão Haussmann, responsável pelas obras públicas na cidade, ou pela sua “demolição” e reconstrução durante o reino de Napoleão III). O assassínio de Bruce Bailey, como de tantos outros militantes em tantos países, ganha assim outro significado.

A expansão das grandes cidades modernas dá um valor artificial, colossalmente aumentado, ao solo em certas áreas, particularmente nas de localização central; os edifícios nelas construídos, em vez de aumentarem esse valor, fazem-no antes descer, pois já não correspondem às condições alteradas; são demolidos e substituídos por outros. Isto acontece antes de tudo com habitações operárias localizadas no centro, cujos alugueres nunca ou então só com extrema lentidão ultrapassam um certo máximo, mesmo que as casas estejam superpovoadas em extremo. Elas são demolidas e em seu lugar constroem-se lojas, armazéns, edifícios públicos.(1)

O texto citado é de Fredrich Engels, da sua obra Para a Questão da Habitação, editada em 1872, e revela que se processos de gentrificação são tão recentes como o emprego da palavra, estes mesmos processos estão enraizados em algo de mais fundamental e mais antigo chamado o capitalismo. Uma metáfora poderá ajudar-nos a circunscrever esta relação, a de fronteira.

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Uma fronteira marca uma linha de separação, um traço desenhado no solo, ou erguida em cerca, muralha, arame farpado, miradouros. A separação, para além de física é também ética, política, anunciando uma divisão entre o que é permitido e não permitido, o legal e não legal, o incluído e o excluído; uma divisão entre autoridades, poderes, soberanias. No imaginário colonial, a fronteira traça os limites da civilização frente ao mundo das trevas da barbárie, da selvajaria, do subdesenvolvimento. Susceptível a usos diversos, plástica, a fronteira, na segunda metade do século vinte, começa a aplicar-se a cidades. Os norte americanos falarão da “selva de alcatrão” para referirem-se a bairros problemáticos, inseguros, habitados por gente de fraca moral, desordenados, criminosos, com a pertença de classe, raça e/ou etnia a servir de identificação. E como o discurso de fronteiras serve para dividir, serve igualmente para racionalizar e conquistar. A cidade terá que ser assim também colonizada para renascer. A gentrificação é uma arma dessa reconquista, e nos anos oitenta as suas batalhas chamaram-se “Tompkins Square Park” em Nova Iorque (1988), “Waterlooplein” em Amsterdão (1981), “Hafenstraße” em Hamburgo (1987), “Kreuzberg” em Berlim (1980s), “Place de la Réunion” em Paris (1990), “Brixton” em Londres (1981/85). Nas palavras cantadas por Lou Reed, “É melhor agarrares-te bem, algo passa-se aqui. É melhor agarrares-te bem, então te encontrarei em Tompkins Square.”(2)

Como qualquer noção que ganha funções ideológicas, as “fronteiras” da cidade distorcem enquanto revelam. Aludem ao mito do empreendedor individual transformando o mundo de bairro em bairro para o seu bem enquanto lucra pessoalmente. Mas escondem forças económicas globais empenhadas num desenvolvimento desigual no seio de espaços urbanos. A fronteira da gentrificação não é mais que uma instância particular das linhas de desigualdade que caracterizam todas as relações sociais capitalistas. Mobilizada de forma sistemática a partir das décadas de 60 e 70, a gentrificação foi tanto uma resposta, como uma contribuição, a uma série mais ampla de mudanças globais: a expansão da economia dos anos 80 animada por um crescente desregulamento da actividade económica; a restruturação das economias capitalistas desenvolvidas com maiores fluxos de capital a serem concentrados em áreas de serviços (principalmente financeiros), lazer e consumo, com processos paralelos de desindustrialização; a emergência de cidades “globais” e hierarquias entre cidades numa concorrência desenfreada para capturar capital. A cidade, neste contexto, transforma-se numa máquina de guerra: guerra externa perante outras cidades, guerra interna de pacificação de populações insubmissas, ambas com o propósito de assegurar a acumulação de riqueza.

A fronteira, ou as fronteiras urbanas, são fronteiras de lucro, de mais-valia. Enquanto agência de colonização urbana, a gentrificação pressupõe a prática sistemática de desalojamento de classes populares. Fenómeno hoje mundial, com variações locais (e que não extingue de todo processos contínuos de suburbanização), baseia-se numa possibilidade económica muito simples: a diferença potencial no valor da renda de solos e áreas urbanas construídas. A gentrificação não é mais que a realização desse potencial; processo no entanto não só económico, mas também político e social. Ela pressupõe a lei e o poder do estado e requere o apagar da geografia e da história das classes populares da cidade, reinscrevendo outra história social que justifica preventivamente outro e novo futuro urbano. “É certo”, como escreve Neil Smith, “que a gentrificação constitui um movimento de regresso à cidade, mas é um movimento de regresso à cidade por parte do capital mais que da gente.”(3)

O metrópoles moderno torna-se em consequência um espaço dividido, um aglomerado de enclaves e de geografias de segregação vigiadas e policiadas por agências e dispositivos de controlo. Espaços públicos enquanto zonas de autodefinição colectiva, resultado de encontros agónicos, transformam-se em áreas domadas, só acessíveis a identidades sociais pré-definidas e utilizáveis exclusivamente segundo ritmos de ser, modos de estar, pré-seleccionados. A cidade assegura-se como espaço de “normalidade”, condição necessária para a sua função de absorver o excedente produtivo e de mais-valia de uma economia regida pior uma única lógica, a de crescimento ilimitado.

Foi o Henri Lefebvre que nos relembro nos anos 60 que a cidade é uma obra colectiva, produto da criatividade e das relações sociais de todos que contribuem e contribuíram para a sua realidade. Mas o que caracteriza o capitalismo é a transformação de qualquer obra que se possa usar em algo que se possa vender, a substituição do valor de uso pelo valor de troca. A cidade por sua vez, no giro capitalista, é igualmente sujeita a esta metamorfose. Ela vende-se. Assim, as cidades deixam de ser o que o Lefebvre descrevia como “refúgios do valor de uso, germes de uma virtual predominância e de uma valorização de uso”; “centros de vida social e política onde se acumulam não só riquezas mas conhecimentos, técnicas e obras.”(4) Segundo Lefebvre, o “uso eminente da cidade, ou seja das ruas e das praças, dos edifícios e dos monumentos, é a Festa.”(5)

A realidade complexa, contraditória da mercadoria capitalista reproduz-se ao nível da cidade. Formas de ser, de vida, associadas ou ligadas a hábitos não económicos desaparecem ou são apropriadas e mercantilizadas como folclore. “O centro urbano transforma-se…em produto de consumo de alta qualidade para estrangeiros, turistas, gente da periferia, suburbanos. Ele sobrevive graças a este papel duplo: lugar de consumo e consumo de lugar.”(6) A cidade divide-se em zonas funcionais de produção de riqueza, de consumo, de habitação e de decisão. “A vida urbana [que] supõe encontros, confrontos de diferenças, conhecimentos e reconhecimentos recíprocos (e incluindo afrontamento ideológico e político) de modos de vida, de “padrões” que coexistem na cidade” é afastada da urbe construída;(7) controlada, marginalizada, sufocada, destroçada, a vida urbana morre e a cidade passa a existir em crise permanente, num estado de excepção regida exclusivamente por regimes de segurança cuja única finalidade é garantir que nada aconteça.

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Que significado pode ter então a demanda de um direito à cidade? Que eficácia, que relevância, poderá ter uma politica de habitação “mais justa” no contexto dum capitalismo globalizado? Não desprezando de todo tais políticas, é no entanto da maior importância assinalar os seus limites práticos e igualmente a pobreza de tais políticas perante a crise da cidade. Reduzir o direito a habitar a cidade a um direito de habitação é já por si assumir a miséria da mercantilização de espaços urbanos, e logo submeter políticas de habitação a avaliações de viabilidade segundo critérios essencialmente económicos e de ordem política. É, por outras palavras, condenar tais políticas ao fracasso.

Habitar não significa habitação, trágica e violenta tradução de notáveis políticos e ideólogos da terceira republica francesa. “Até esse momento”, diz-nos Lefebvre, “‘habitar’, era participar numa vida social, numa comunidade, numa aldeia ou cidade. A vida urbana detinha entre outras esta qualidade, este atributo. Ela dava a habitar, ela permitia aos citadinos-cidadãos de habitar.”(8) Habitar é um modo de ser no mundo, um modo que nunca foi, nem nunca poderá ser, individual. Habitar implica criar, cuidar, e partilhar espaço trilhado por mulheres e homens; ao partilhar, fazemo-nos e refazemo-nos em comunidade com outros.

O direito à cidade logo não deve ser concebido como um direito a algo já existente, um bem identificável, catalogável e mensurável. A cidade, pelo contrário, faz-se. Ela é constituída e construída através de relações sociais em que cada um age como tecelão. Se a urbanização capitalista tende a destruir a cidade enquanto realidade social e política, enquanto realidade comum de números sem fim de maneiras de habitar, então o direito à cidade só pode ser entendido como uma reapropriação da cidade pelos citadinos.

Fechamos com as palavras de David Harvey:

… a questão de que tipo de cidade queremos não pode ser divorciada da questão de que tipo de pessoas queremos ser, que tipo de relações socias procuramos, que estilo de vida desejamos, que valores estéticos asseguramos. O direito à cidade é por conseguinte muito mais que o direito de um indivíduo ou de um grupo de aceder aos recursos que a cidade incarna: é o direito de mudar e reinventar a cidade segundo o desejo dos nossos corações.(9)

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1. Friedrich Engels, Para a Questão da Habitação: Primeira secção (Citado no dia 6 de Maio: https://www.marxists.org/portugues/marx/1873/habita/cap01.htm).
2. Lou Reed, “Hold On”, New York, 1989.
3. Neil Smith, La nueva frontera urbana : Ciudad revanchista y gentrificación. Madrid: Tarficantes de sueños, 2012.,p. 130..
4. Henri Lefebvre, Le Droit à la Ville. Paris: Economica/Anthropos, 2009, pp. 4, 2.
5. Ibid., p. 2.
6. Ibid., p. 10.
7. Ibid., p. 13.
8. Ibid., p. 14.
9. David Harvey, Rebel Cities: From the Right to the City to the Urban Revolution. London: Verso, 2012, p. 4.

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